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28/01/2021 - Academias de Medicina reúnem grandes expoentes para debater a pandemia
“É uma oportunidade única conseguirmos reunir uma constelação tão qualificada, tão experiente como esta, para nos contar sobre as perspectivas deste momento tão difícil pelo qual estamos passando. É um momento ainda de podermos ter contato com os amigos, mesmo a distância, dispostos a colaborar, sem quaisquer limites, para este enfrentamento”, destacou o presidente da Associação Paulista de Medicina (APM) e da Academia de Medicina de São Paulo (AMSP), José Luiz Gomes do Amaral, em abertura do “Encontro de Academias de Medicina”, no dia 27 de janeiro.
O evento on-line foi realizado pela Academia Nacional de Medicina (ANM) e pela Federação Brasileira das Academias de Medicina (FBAM), com organização do presidente da ANM, Rubens Belfort Mattos Júnior; do vice-presidente da instituição, Omar da Rosa Santos; do presidente da FBAM, Vicente Herculano da Silva; e de José Luiz Gomes do Amaral, que também é membro titular da ANM.
História das epidemias e pandemias
Na primeira aula da noite, o infectologista do Hospital Oswaldo Cruz Stefan Cunha Ujvari, autor de diversas obras sobre a histórias das epidemias e pandemias, traçou um breve panorama sobre o surgimento do primeiro vírus ao longo da humanidade, trazendo um quadro comparativo com a Covid-19. De acordo com estudos, há cerca de 10 mil anos, quando o ser humano deixou de ser nômade e passou a cultivar a agricultura e domesticar animais, houve o surgimento do vírus do sarampo.
“Ele é geneticamente semelhante ao vírus da peste bovina, ou seja, à medida que o ser humano domesticou naquela época o gado, entrou em contato com um vírus que gerou o sarampo. A peste bovina causou uma mortalidade muito grande nos rebanhos, foi da Ásia para a Europa e da Europa para a África, através da colonização italiana. No último dia de dezembro de 2019, nos deparamos com mais um agente viral que teve origem nos animais, provavelmente veio do morcego. Isso é uma história que se repete, com alguns exemplos de quadros virais”, destaca.
Ujvari também citou a varíola, um vírus mutante que pode ter vindo do gerbo, conhecido como roedor-do-deserto, ou de um vírus mutante do camelo; a dengue, que circulava nos primatas da Malásia; a Aids, surgida em torno dos anos 1900, no interior do Congo, depois disseminada pelo mundo; e os vírus Influenza, que vêm de aves domesticadas e de suínos. “A síndrome respiratória aguda grave (Sars), surgida em 2003, é uma mutação de vírus do morcego ferradura, atingindo um gato selvagem que o homem procurava, na província chinesa de Guangdong, para a culinária. Depois, a síndrome respiratória do Oriente Médio (MERS-CoV), um vírus mutante, que veio novamente dos morcegos, atingiu os camelos e o ser humano.
O especialista destaca que, em toda a história da humanidade de enfrentamentos de pandemias e epidemias, há sempre procura pelos responsáveis, o que leva a atitudes racistas e xenófobas. “Na idade média, os culpados pela peste negra eram os judeus, perseguidos, afogados, enforcados e queimados na tentativa de barrar a doença. Tivemos também a perseguição aos homossexuais por conta da disseminação da Aids. Da mesma maneira que hoje, muitos culpam a cultura chinesa pela Covid-19, por conta do hábito de se alimentar de animais silvestres”, compara.
Do mesmo jeito que há a busca por culpados, a humanidade sempre se debruçou em encontrar a esperança da cura e do controle. “Na peste negra, acreditava-se ser um castigo de Deus e as pessoas se autoflagelavam e arregimentavam uma série de seguidores. Tínhamos as procissões, na tentativa de se castigar e evitar o pecado, o castigo de Deus - responsável por aquela doença. A comunidade científica acredita que seriam os gases venenosos emanados da terra”, complementa.
Ocorrida por volta de 1348, a peste negra, considerada a pior epidemia da história, causou a mortalidade de 1/3 da população europeia em 2 anos. “Naquela época, foi instituída a quarentena. Veneza era uma república extremamente católica e definiu que todas as embarcações deveriam aguardar um número de dias, antes de se aportarem para os trâmites comerciais. Definiu-se quarenta dias em razão de várias passagens bíblicas. Daí nasceu o termo quarentena que adotamos até hoje”, explica Ujvari.
Por fim, o palestrante relembrou mudanças de hábitos ocorridas por conta de epidemias. “Com a febre amarela, disseminada no Brasil em 1849, tivemos o término do tráfico negreiro porque os médicos acreditavam que ele trazia a doença. Mas isso só foi possível porque a doença acometeu gravemente a população branca, enquanto os escravizados já eram imunes ao vírus, ou seja, acreditavam ser castigo de Deus. Cinco anos depois, com a cólera, os enterros passam a ser realizados em lugares ventilados e arejados, daí surge o primeiro cemitério brasileiro.”
Defesa da Saúde
“A história é muito importante para entender o presente. Porque, desde o negacionismo à busca por culpados, cura fácil, soluções antiéticas e sem valores científicos que observamos nos estudos históricos, houve amplificação nesta primeira epidemia da era digital que estamos atravessando. Agora, tudo ao alcance de um compartilhar e de um like. É uma epidemia que se marca pela condução política, sobrepondo, em níveis globais, a questão científica e técnica”, abriu a palestra “A epidemia de 2020 no Brasil” o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta.
Ele afirmou que o primeiro alarme sobre o surgimento do novo coronavírus na província chinesa de Wuhan veio pelo seu então secretário Nacional de Vigilância em Saúde, Wanderson Silva. “O Brasil foi o primeiro país a enviar um e-mail à Organização Mundial da Saúde questionando a respeito do que estava acontecendo na China. Em janeiro de 2020, em uma resolução híbrida, sob pressão dos países do Fórum de Davos, instituiu emergência à cidade de Wuhan e internacional”, relata Mandetta.
Ao mesmo tempo, a China - potência na produção de inúmeros produtos industriais da área da Saúde - suspendeu toda a exportação dos insumos, base para o enfrentamento da doença. Aqui no Brasil, houve uma preocupação em preparar os laboratórios e aumentar a vigilância nos portos e aeroportos, até surgir o primeiro caso em 26 de fevereiro. “Daquele paciente, surgiram 32 casos, desdobrando a linha de transmissão. Precisávamos de tempo para preparar o sistema de Saúde que já vinha mostrando sinais de fadiga, principalmente na capacidade de leitos, em que as decisões judiciais diariamente arbitravam quem entrava ou não nos âmbitos da terapia intensiva Brasil afora”, relembra.
Diferente de outras epidemias e pandemias, o novo coronavírus acometeu, em primeiro lugar, a classe média-alta de São Paulo, do Rio de Janeiro e de Brasília. “Em todos os lugares, foram estes brasileiros que trouxeram a doença infecciosa de viagens ao exterior. O nosso pesadelo era quando chegasse nas comunidades periféricas, por sabemos que o SUS não estava preparado para atender a totalidade de seus pacientes”, acrescenta o ex-ministro da Saúde.
Para o enfrentamento, a equipe ministerial definiu três pilares: defesa intransigente à vida, todas as estratégias partiriam do SUS e quaisquer decisões seriam baseadas por convicções científicas. Também foi criada uma comissão composta por 50 entidades, entre academias, universidades, associações e sociedades mundiais de Saúde.
“Em contrapartida, observávamos no Governo Federal uma opção muito clara e lúcida de que não havia ali o apego em defesa à vida. Declarações como ‘brasileiro precisa ser estudado porque vive no esgoto’, ‘esta gripe é pequena e só morre quem iria morrer mesmo’ e ‘qualquer pessoa que tenha um corpo atlético ficará livre dessa doença’ afetavam e desprezavam a vida. Além da preferência pelos CNPJs em detrimento dos CPFs”, critica Mandetta.
O ortopedista também discorda do Conselho Federal de Medicina por não ter tomado uma postura rígida no enfrentamento à banalização da Medicina, frente aos discursos infundados oriundos do representante máximo do Brasil. “A briga era com a Medicina, com o SUS, com hospitais, com gente que gosta de gente. Tivemos uma coalizão mostrando que o vírus era o nosso inimigo, mas não era a lógica política. O que vimos, em sequência, foram a crescente contabilidade dos óbitos, sete milhões de testes para diagnóstico quase vencendo dentro de um depósito em aeroporto e o movimento antivacina ser verbalizado sistematicamente, entre outros pontos”, resume.
Mutações, grupos de risco e médico-paciente
O acadêmico da ANM José Luiz de Lima Filho trouxe para discussão a mutação rápida do novo coronavírus e a intensidade da doença, sem tendência de queda para infecções e óbitos, em sua aula “Evolução, números atuais e perspectivas da pandemia pela Covid-19 no Brasil”. Pesquisas recentes sugerem que o SARS-CoV 2, o vírus que causa a Covid-19, está circulando com uma cepa mais agressiva (D614G), causando quadros mais graves, mas cientistas afirmam que não há mutação significativa para sugerir mudanças no comportamento viral.
“Os números altos de infecção e de óbitos são preocupantes. A epidemia está crescendo de forma muito rápida; saiu do crescimento linear, no início do ano passado, e está crescendo de forma exponencial em vários locais”, ressalta o pesquisador.
Segundo Lima, durante a crise sanitária, o tripé economia, saúde e política foi discutido no mundo todo, se sobressaindo a questão política, em vários países, não só no Brasil. “Com isso, as medidas de contenção da doença perderam o controle, trazendo, como consequência, o crescente número de casos.”
Ele traçou um breve panorama dos protocolos de controle implantados na Europa, mesmo assim oscilando entre aumentos e contenções das infecções. “Embora já começaram em muitos países as vacinações, o aumento no número de óbitos ainda prevalece. Além disso, em um ano, a mutação do vírus da Covid-19 foi rápida, mais do que o da gripe, enganando o sistema imunológico e os sistemas de governo”, alerta.
O pneumologista Euler Esteves Ribeiro, em sua palestra sobre “A pandemia da Covid-19 e o desafio do envelhecimento saudável”, ressalta que, embora o vírus hoje seja prevalente na população entre 39 e 54 anos, é altamente grave a idosos, dada as alterações no sistema imunológico, o acúmulo de várias comorbidades, desnutrição e falta de atividade física.
“Em pessoas idosas, a prevalência da doença está entre o sexo feminino, entretanto, morrem mais pessoas do sexo masculino”, acrescenta. Segundo Ribeiro, os protocolos de segurança, como manter o distanciamento social, usar máscara, fazer a higienização correta das mãos e usar álcool em gel, muitas vezes, não são colocados em prática, o que favorece a proliferação da doença.
Sobre a Amazônia, que entrou na fase roxa, a mais grave do novo coronavírus, o pneumologista que já assumiu a Secretaria da Saúde do estado, em 1983, trouxe um pouco do retrato da região dos anos 1980. “Naquele período, estávamos começando com a Zona Franca de Manaus, vinham pessoas do Brasil todo e de outros países para trabalhar no distrito indústria. Hoje, possui 300 mil empregados diretos, fora os indiretos do mundo todo.” Ele ainda recordou das endemias de malária, febre amarela e tuberculose que foram diminuídas graças à parceria entre os governo federal e estadual.
Por fim, o cardiologista Waldomiro Manfroi falou sobre “Erros a repetir de 1918 a 2020”, ressaltando que desde Hipócrates, os médicos encontram na sua profissão a oportunidade de trabalhar com as questões mais íntimas das pessoas, por enfrentarem o binômio Ciência e Arte, realizando pesquisas e produzindo literatura.
“Quando surgiu a notícia de um vírus, que começa em Wuhan, cidade chinesa, e no dia 23 de janeiro, já tínhamos enfermos e números de mortos, isolamento da província do resto do país, começaram as perguntas se a grave doença chegaria ao Brasil”, relembra.
Manfroi compara o fato ligeiramente com a epidemia de gripe espanhola, em 1918, sobre a cidade do Rio de Janeiro, então capital federal da República. Um mal ainda desconhecido começou a ser noticiado nos jornais da capital. ”As pessoas começaram a buscar respostas sobre a doença, porém, eram informações contraditórias, tendo os primeiros casos ocorrido no estado, em setembro daquele ano. Em Porto Alegre, os primeiros registros se deram por parentes que residiam no Rio. Até então, afirmavam que a nova doença se alastrava rapidamente e já havia causado centenas de mortes.”
Em janeiro de 2020, recorda que se acreditava que a pandemia poderia chegar ao Brasil por meio de aviões vindos da China, mas talvez não de forma tão prevalente como ocorreu durante a pandemia de 1918, porque haveria mais recursos, médicos e os meios modernos de comunicação, para que “as autoridades pudessem ser transparentes e não esconderem sobre a gravidade do vírus, como ocorreu em 1918”, compara.
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