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27/10/2020 - Cine Debate discute clássico italiano “Amarcord”
Na última sexta-feira, 23 de outubro, a Associação Paulista de Medicina realizou mais uma edição on-line do Cine Debate. Desta vez, o evento abordou o clássico do cinema italiano “Amarcord” (1973), dirigido por Federico Fellini.
O moderador do debate foi Wimer Bottura Junior, médico psiquiatra e presidente da Associação Brasileira de Medicina Psicossomática, que há 22 anos coordena o Cine Debate. Participaram também a psicanalista Miriam Tawil e o escritor e redator Renzo Mora, autor dos livros “Cinema Falado” e “Sinatra - O Homem e a Música”.
“Damos início a mais um Cine Debate falando sobre um dos maiores clássicos do cinema mundial. Agradeço a presença de nossos debatedores e espero que eles se sintam em casa diante da nossa plateia que é sempre tão receptiva e leal”, introduziu Bottura.
Quem iniciou o bate-papo foi Renzo Mora, ressaltando a frase do poeta Mário Quintana: “o passado só é bom porque nós o inventamos”. Ou seja, as lembranças sobre determinados acontecimentos tendem a ser distorcidas e os seres humanos costumam ser saudosistas sobre situações que já aconteceram. É neste sentido que o filme “Amarcord” mostra a exaltação da memória e do passado.
“Quando pensamos nesta obra, vemos que Titta, o adolescente, não é exatamente o protagonista e sim a cidade em que ele mora. Diversas vezes o diretor Fellini disse que o filme não representava a infância dele, mas, ao mesmo tempo, ele não negava que existiam diversos elementos autobiográficos no filme, de lembranças. No entanto, assim como as lembranças que normalmente temos da infância, no filme as suas representações são fragmentadas e sem um prosseguimento claro, com personagens exagerados, com um pé caricatural”, explicou o escritor.
Ele lembrou a afirmação do diretor durante uma entrevista à revista Rolling Stone, em 1984, em que ressaltou a necessidade de entender a infância como a possibilidade de manter o equilíbrio entre o consciente e o inconsciente, entre a vida real e a vida idealizada. Por isso, Fellini trabalha com leveza e poesia através do desenvolvimento de personagens que despertam empatia e simpatia nos espectadores.
“Tudo aquilo que é visto no filme tem um impacto muito forte. Por mais que seja exagerado, os personagens podem ser caricaturais ou feios, eles não causarão repulsa, muito pelo contrário, despertam um carinho. Mesmo no caso dos personagens que possuam alguma maldade ou malícia, acaba existindo uma afetuosidade”, elucidou Mora.
O debatedor apontou ainda algumas características fundamentais que fazem parte da estética felliniana, como as piadas, consideradas até imaturas por conta do tom da sátira, mas que seduzem o espectador e o faz querer ser levado para dentro daquele universo retratado no filme.
“Em alguns momentos, há a quebra da quarta parede e temos um dos personagens falando diretamente conosco, nos envolvendo, fazendo com que façamos parte daquele cenário e possamos entender o contexto histórico no qual a cidade e seus acontecimentos estão inseridos. Dessa forma, quando somos chamados para fazer parte desse local, de uma certa maneira, acabamos nos tornando parte dele”, encerrou o escritor.
Psicanálise
Em seguida, a psiquiatra Miriam Tawil trouxe uma perspectiva psicanalítica de “Amarcord”, abordando a maneira como os personagens lidam com suas questões internas e de que maneira elas refletem diretamente em suas ações no decorrer do enredo.
Para tanto, a especialista recorreu as explicações de Sigmund Freud sobre lembranças. “Quando temos traumas sobre lembranças que não podem ser repetidas, é comum passar a ter sintomas de neurose. Nós não conseguimos nos afastar daquilo. Já quando é possível recordar, repetir e contar outra vez para se lembrar, nós nos afastamos desse choque”, desenvolveu.
No caso do filme, o personagem de Titta está constantemente a recuperar lembranças para se desvencilhar de uma realidade que não lhe agrada. Isso lhe causa uma sensação constante de fuga daquele cenário da vida real, com uma cidade fascista e com seus professores de tom autoritário.
Para Tawil, é inconsistente dizer que Titta é um adolescente delinquente, pois suas ações correspondem às de um jovem levado que está passando por um período de mudanças no corpo, na sua sexualidade e vivendo uma fase em que o mundo não lhe trata mais como uma criança, mas que, ao mesmo tempo, não consegue vê-lo como um adulto.
“Ele é um personagem que está naturalmente querendo ir embora. Isso fica ainda mais acentuado depois que a mãe morre e ele fica parado olhando o oceano. Parece que ele está imaginando para onde ele poderia ir. O pai era muito agressivo e era a mãe quem o defendia, agora, se ele não tem mais a mãe, quem é que vai ajudá-lo? Tem muita solidão na vida dele”, refletiu.
De acordo com a psicanalista, o cinema e a arte têm o poder de mudar a vida das pessoas e reacender lembranças que estavam apagadas nos espectadores. “Traz um resgate de memórias que é muito bonito, mas para cada um o filme vai ser visto de uma maneira. O próprio Fellini fala que aquele filme não é algo que ele relembra com prazer por conta do fascismo, mas ele continua sendo importante para muita gente”, encerrou.
Surrealismo
Finalizando o debate, Wimer Bottura discutiu o surrealismo que a obra proporciona ao público. “O filme fala sobre a superficialidade dos fatos, mas da profundidade da imaginação. O diretor faz uma crítica a todo um contexto ao trabalhar com imagens estereotipadas, uma característica comum no cinema. Então, a questão de debater filmes visa também dar para as pessoas a oportunidade de confrontar as mensagens que são passadas subliminarmente em cada um deles.”
Bottura comentou sobre alguns elementos cruciais do filme, como personagens que permeiam toda a obra e contribuem para que ela tenha tanta importância mesmo na atualidade, além de evidenciar elementos como o relógio e a igreja – figuras inanimadas que aparecem em outros filmes italianos e dão um ar ameaçador para as cenas.
Além disso, o moderador refletiu sobre a forma irônica que o enredo do filme é construído. De acordo com ele, Fellini prefere contar de forma sarcástica uma história que poderia ser cruel e sobre pessoas más. Dessa forma, o diretor traz humor e leveza para a obra.
“Esse filme desperta essa relação de ‘João e Maria’, essa coisa da infância e da adolescência em que ele acaba sendo tudo ao mesmo tempo, mas na realidade não é nada daquilo que imaginou. É um grande marco não apenas na carreira de Fellini, mas na história do cinema”, finalizou Bottura.