Como grandes empresas deixaram o Brasil viciado em junk food
21/09/2017 - Como grandes empresas deixaram o Brasil viciado em junk food
Gritos de crianças brincando penetravam o calor úmido da manhã, enquanto uma mulher empurrava um carrinho branco por ruas esburacadas e cheias de lixo. Ela fazia entregas a algumas das famílias mais pobres de Fortaleza, levando pudim, biscoitos e outros alimentos processados aos fregueses de sua lista.
Celene da Silva, 29, faz parte do contingente de milhares de vendedores de porta em porta que trabalham para a Nestlé, ajudando o maior conglomerado mundial de alimentos processados a ampliar seu alcance e chegar a um quarto de milhão de famílias nos recantos mais distantes do Brasil.
Enquanto ela deixava pacotes de pudim Chandelle, chocolates Kit Kat e cereal infantil Mucilon nas casas de seus fregueses, uma coisa chamava a atenção neles: muitos, mesmo as crianças pequenas, estavam visivelmente acima do peso.
Celene apontou para uma casa que consta em sua lista e sacudiu a cabeça, contando que o dono do lugar, um homem morbidamente obeso, morrera na semana anterior. "Ele comeu uma fatia de bolo e morreu dormindo", ela disse.
A própria Celene pesa mais de 90 quilos e descobriu recentemente que tem pressão alta, uma condição que ela reconhece que provavelmente está ligada a seu fraco por frango frito e a Coca-Cola que ela toma com todas as refeições, incluindo o café da manhã.
O exército de profissionais de vendas diretas que a Nestlé tem no Brasil faz parte de uma transformação mais ampla do sistema alimentar, distribuindo alimentos processados e bebidas doces de estilo ocidental aos bolsões mais isolados da América Latina, África e Ásia.
Enquanto seu crescimento diminui nos países mais ricos, as multinacionais de alimentos, como Nestlé, PepsiCo e General Mills, vêm ampliando agressivamente sua presença em países em desenvolvimento, desencadeando uma máquina de vendas que subverte as dietas tradicionais em países que vão do Brasil a Gana e Índia.
Uma análise feita pelo "New York Times" de documentos das empresas, estudos epidemiológicos e relatórios governamentais –além de entrevistas com dezenas de nutricionistas e especialistas em saúde pelo mundo afora–revela uma transformação profunda no modo em que os alimentos são produzidos, distribuídos e promovidos em boa parte do mundo.
Para muitos especialistas em saúde pública, essa mudança está contribuindo para uma nova epidemia de diabetes e problemas cardíacos, doenças crônicas que são alimentadas pelos índices crescentes de obesidade em países que há uma geração apenas enfrentavam a fome e a desnutrição.
A nova realidade é epitomada por um fato único e chocante: em todo o mundo, hoje há mais obesos que pessoas abaixo do peso. Ao mesmo tempo, dizem cientistas, a disponibilidade crescente de alimentos de alto teor calórico e pobres em nutrientes está gerando um novo tipo de má nutrição em que cada vez mais pessoas estão ao mesmo tempo acima do peso e subnutridas.
"A história que se conta é que estamos no melhor dos mundos possíveis, com alimentos baratos e largamente disponíveis. Se você não pensar a fundo, faz sentido", disse Anthony Winson, que estuda a economia política da nutrição na Universidade de Guelph, em Ontario. Mas, segundo ele, um olhar mais próximo revela uma realidade muito diferente. "Para falar em termos simples, essa dieta nos está matando."
Mesmo os críticos dos alimentos processados reconhecem que há muitos fatores envolvidos na ascensão da obesidade, incluindo fatores genéticos, urbanização, o aumento das rendas e os modos de vida mais sedentários.
Executivos da Nestlé dizem que seus produtos ajudam a aliviar a fome e fornecem nutrientes cruciais e que a empresa já reduziu os teores de sal, açúcar e gordura de milhares de seus produtos para torná-los mais saudáveis. Mas Sean Westcott, diretor de pesquisas e desenvolvimento de alimentos da Nestlé, reconheceu que a obesidade vem sendo um efeito colateral inesperado da disponibilização mais ampla de alimentos processados de custo acessível.
Westcott acrescentou que o problema se deve em parte à tendência natural das pessoas de comer demais assim que têm condições econômicas de comprar mais comida. A Nestlé, ele disse, procura informar os consumidores sobre os tamanhos corretos das porções e se esforça para produzir e vender alimentos que equilibram "prazer e nutrição".
Hoje existem mais de 700 milhões de obesos no mundo, 108 milhões dos quais são crianças, segundo estudo publicado recentemente no "New England Journal of Medicine". A prevalência da obesidade dobrou em 73 países desde 1980, contribuindo para 4 milhões de mortes prematuras, segundo o estudo.
É um problema de natureza tanto econômica quanto nutricional. À medida que empresas multinacionais intensificam sua presença no mundo em desenvolvimento, elas transformam a agricultura local, incentivando os agricultores a abrir mão do cultivo de variedades de subsistência em favor de commodities como cana-de-açúcar, milho e soja, os ingredientes básicos de muitos alimentos industrializados.
É esse ecossistema econômico que domina mercadinhos de bairro, grandes varejistas, produtores e distribuidores de alimentos e pequenos vendedores como Celene da Silva.
Em países tão distantes quanto China, África do Sul e Colômbia, a influência crescente das grandes empresas de alimentos também se traduz em influência política, frustrando as autoridades de saúde pública que querem cobrar impostos sobre os refrigerantes ou criar leis para frear os impactos dos alimentos processados sobre a saúde da população.
Cada vez mais nutricionistas consideram que a epidemia de obesidade está intimamente ligada às vendas de alimentos processados, que subiram 25% em todo o mundo entre 2011 e 2016, enquanto sua alta nos Estados Unidos nesse período foi de apenas 10%, segundo a firma de pesquisas de mercado Euromonitor. As vendas de refrigerantes com gás subiram ainda mais, dobrando desde 2000 na América Latina. Em 2013 venderam-se mais refrigerantes na América Latina que na América do Norte, segundo a Organização Mundial de Saúde.
As mesmas tendências são espelhadas pelo fast food, cujo consumo cresceu 30% em todo o mundo entre 2011 e 2016, enquanto o aumento nesse período foi de 21% nos Estados Unidos, segundo o Euromonitor. A rede Domino's Pizza, por exemplo, ganhou 1.281 restaurantes novos em 2016 –um "a cada sete horas", segundo seu relatório anual–, dos quais todos menos 171 fora dos Estados Unidos.
"Num momento em que o crescimento é mais moderado nas economias consolidadas, acho que uma posição forte nos mercados emergentes será uma posição vencedora", disse recentemente a investidores o executivo-chefe da Nestlé, Mark Schneider. Hoje, 42% das vendas da empresa ocorrem em mercados em desenvolvimento.
Para algumas empresas, isso pode significar focar especificamente sobre jovens, como o presidente da Coca-Cola International, Ahmet Bozer, explicou a investidores em 2014. "Metade da população mundial não tomou uma Coca nos últimos 30 dias", ele disse. "Há 600 milhões de adolescentes que não tomaram uma Coca na última semana. A oportunidade para nós é tremenda."
Defensores da indústria dizem que alimentos processados são essenciais para nutrir uma população crescente e urbanizada, com muitas pessoas com renda em alta e que exigem conveniência.
"Não vamos nos livrar de todas as fábricas e voltar a cultivar todos os grãos nós mesmos. É bobagem. Não vai funcionar", comentou Mike Gibney, professor emérito de alimentação e saúde no University College Dublin e consultor da Nestlé. "Se eu pedir a cem famílias brasileiras que parem de consumir alimentos processados, preciso perguntar também: 'O que elas vão comer? Quem as alimentará? Quanto isso vai custar?'."
O Brasil é, sob muitos aspectos, um microcosmo de como políticas governamentais e a elevação da renda estão levando pessoas a viver melhor e por mais tempo, além de, em grande medida, terem erradicado a fome.
Hoje, porém, o país enfrenta um desafio nutricional novo e grave: nos últimos dez anos o índice de obesidade no Brasil quase dobrou, chegando a 20% da população, e a porcentagem de pessoas com sobrepeso quase triplicou, chegando a 58%. A cada ano 300 mil pessoas recebem o diagnóstico de diabetes tipo 2, uma condição fortemente vinculada à obesidade.
O Brasil também exemplifica a força política da indústria de alimentos. Em 2010, uma coalizão de empresas brasileiras de alimentos e bebidas torpedeou uma série de medidas que visavam limitar os anúncios de junk food voltados às crianças. O desafio mais recente veio do presidente Michel Temer, centrista favorável às grandes empresas e cujos aliados conservadores no Congresso estão tentando limitar e reduzir o punhado de leis e regulamentos que visam incentivar a alimentação saudável.
"O que temos é uma guerra entre dois sistemas de alimentação: uma dieta tradicional de comida de verdade, produzida no passado por agricultores perto de nós, e os produtores de alimentos ultraprocessados, feitos para serem consumidos em excesso e que, em alguns casos, geram dependência", disse o professor de nutrição e saúde pública Carlos A. Monteiro, da USP.
"É uma guerra, mas um sistema de alimentação tem desproporcionalmente mais poder que o outro."
New York Times, em Fortaleza
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