ARTIGO

23/05/2019 - Microbiota no paciente cirúrgico do aparelho digestivo: diagnóstico e manuseio

A aplicação de técnicas de sequenciamento genético para avaliar a composição do microbioma humano promoveu avanço extraordinário na compreensão das relações íntimas e de dupla mão de direção entre nosso microbioma e genoma (SENDER, FUCHS, MILO, 2016). 

O intestino, em especial o grosso, abriga a maior quantidade de bactérias de nosso microbioma, que interagem conosco na dependência da dieta, estilo de vida e genética (SENDER, FUCHS, MILO, 2016). 

Esta interação se aplica ao próprio intestino, mas também tem repercussão sistêmica, sob a forma de eixos que envolvem o intestino e a sua microbiota e o fígado, pâncreas, cérebro, pulmão, osso e os sistemas imunológico e endócrino, entre outros (RANJAM et al., 2016).

Em condições conviviais adequadas, temos a situação de normobiose, na qual bactérias comensais e simbiontes encontram-se em equilíbrio com as enteropatogênicas. Na normobiose, nos beneficiamos em termos de reforço da barreira intestinal, tolerância imunológica e da produção de um enorme número de moléculas sintetizadas pela microbiota intestinal (RANJAM et al., 2016).

No entanto, em condições adversas, como dieta inadequada, sedentarismo, uso de tabaco e álcool, estresse físico e emocional, enfermidades, uso de antibióticos e outros medicamentos, entre outros condicionantes, podemos encontrar a situação de disbiose, na qual prevalecem as bactérias enteropatogênicas sobre as simbióticas e comensais. Na disbiose, aumenta a permeabilidade intestinal, pode ocorrer translocação de microrganismos e moléculas inadequadas e se estabelece uma resposta inflamatória cuja intensidade pode depender do tipo e intensidade da prevalência de bactérias patogênicas. Com isso, perdemos os benefícios da normobiose (NIEUWDORP et al., 2014).

Na prática, a composição da microbiota intestinal pode ser obtida pelo sequenciamento do gene 16S rRNA. A amostra fecal tem o seu DNA extraído, limpo de produtos contaminantes e sequenciado nas suas regiões hipervariáveis deste gene. Após a detecção das sequências, realiza-se montagem e análise dos dados, o que permite taxonomisar as bactérias em filo, classe, ordem, família, gênero e espécie (em torno de 50%).

O maior conhecimento da composição da microbiota bacteriana intestinal permitiu estabelecer associações entre distintas assinaturas microbiológicas na saúde e na doença. A adição da metabolômica – análise dos metabólitos – permitiu identificar milhares de pequenas moléculas produzidas pelas bactérias intestinais, que interagem com nosso metabolismo e genes. A junção do metaboloma bacteriano com o nosso pode ser entendida como metaboloma sistêmico. Com isso, se progrediu no entendimento de mecanismos pelos quais a microbiota intestinal interage com o hospedeiro em diferentes condições de saúde e doença (CANI, 2017).

No período pré-operatório, por exemplo, observou-se que a microbiota intestinal está alterada em pacientes com câncer de cólon. Verificou-se aumento da diversidade microbiana mucosa e abundância diferencial de taxas bacterianas específicas quando comparado com indivíduos controles sem câncer. Microrganismos patógenos associados à boca estão super-representados em tumores de cólon e tendem a ocorrer simultaneamente. Salienta-se a maior presença de Peptostreptococcus na mucosa intestinal e fezes, que poderá vir a ser um biomarcador de câncer colorretal (HIBBERD et al., 2017).

Conhecer e modular a microbiota intestinal pode ajudar a reduzir riscos ou contribuir para alterar o curso clínico de algumas enfermidades (KREZALEK et al., 2016). O doente cirúrgico, em particular, é distinto porque para o tratamento de sua enfermidade vai sofrer um trauma anestésico-cirúrgico cuja evolução desfavorável pode ser atribuída a alterações na microbiota intestinal (KREZALEK et al., 2016).

Admite-se que, em condições normais, a microbiota intestinal contribui para resistência contra microrganismos patogênicos. Mas o estresse fisiológico da lesão cirúrgica sobre o trato gastrintestinal pode modificar a abundância e função da microbiota intestinal em um indivíduo já enfermo (KREZALEK et al., 2016).

Pouco se sabe, ainda, sobre a condição da microbiota no período pós-operatório, mas é possível que, em consequência do trauma, as bactérias intestinais possam se tornar mais virulentas e contribuir para o desenvolvimento de complicações cirúrgicas (KREZALEK et al., 2016).

As perturbações fisiológicas do estresse cirúrgico, em associação com limpeza intestinal do colón, uso profilático de antibióticos, tipo e duração da intervenção cirúrgica, hipóxia e falta de nutrientes na luz intestinal, podem modificar o equilíbrio microbiano intestinal (KREZALEK et al., 2016).

Em particular, a limpeza exaustiva do cólon está associada à redução da camada de muco, diminuição da produção de ácidos graxos de cadeia curta, modificação do pH intraluminal e aumento de Proteobactérias (KREZALEK et al., 2016).

Existem fatores associados ao hospedeiro no período intra-operatório, como a condição de isquemia e reperfusão, e presença de catecolaminas em função da resposta orgânica ao trauma. No intestino, pode ocorrer diminuição da produção de muco e diferentes consequências do manuseio, ressecção e restituição epitelial perante as anastomoses digestivas (GERSHUNI; FRIEDMAN, 2019).

Experimentalmente, observou-se que, mesmo quando transitória, a isquemia durante a anastomose intestinal reduz a quantidade de muco intestinal (FERRARO et al., 1995). A isquemia intestinal também pode ativar as substâncias adenosina e dinorfina que, por sua vez, são pressentidas pelas bactérias por meio de sensores tipo sensum quorum. Neste caso, a Pseudomonas aeruginosa se converte em um fenótipo mais agressivo. Assim, aumenta sua atividade de degradação de colágeno e promove maior permeabilidade intestinal nas junções espessas das células epiteliais intestinais.

Alguns medicamentos também podem contribuir para modificar o comportamento de bactérias. Um exemplo é a morfina, que modifica negativamente o fenótipo da P. aeruginosa para degradar muco e reduzir a integridade epitelial (BABROWSKI et al., 2012).

Ainda, solutos químicos, produzidos durante a feitura da anastomose intestinal, atraem micróbios e células imunes para o sítio, e enviam sinais que induzem mudanças fenotípicas em Pseudomonas e Enterococcus (BABROWSKI et al., 2012).

Em condições de difícil dissecção, por exemplo para a remoção de cânceres, pode ocorrer perda sanguínea que exija transfusão e maior tempo intra-operatório. Isto pode promover a liberação de sinais compensatórios no hospedeiro com manifestação local na área operatória. A microbiota local é capaz de captar estes sinais, e processá-los de modo a aumentar a sua capacidade de aderência ao tecido e aumentar sua produção de colagenase. Em etapa subsequente, esta modificação da microbiota pode estar associada com a deiscência mediada por bactérias (GAINES, 2018).

As bactérias Enterococcus faecalis, muito prevalentes em anastomose intestinal, produzem a enzima gelatinase, que degrada colágeno e ativa metaloproteinases de matriz intestinal, capazes de degradar colágeno e contribuir para a deiscência da anastomose (GUYTON; ALVERDY, 2017).

Redução da presença de disbiose
No período pré-operatório, poderíamos considerar evitar o preparo de cólon, quando possível, e refinar o uso de antibióticos profiláticos por suas consequências prejudiciais para a microbiota residente.

No período intraoperatório, manter sempre técnica cirúrgica apurada, evitar sangramentos e transfusões sanguíneas, manipular os tecidos com delicadeza, executar anastomoses digestivas dentro do maior padrão técnico e optar, sempre que possível, por vias de acesso menos traumáticos e de menor impacto inflamatório.

Dentre as distintas possibilidades de se modificar a composição da microbiota intestinal, destacam-se os prebióticos, probióticos e simbióticos, cujo consumo tem aumentado exponencialmente na última década.

Os probióticos são definidos pela FAO/WHO como organismos vivos que, ingeridos na quantidade adequada, conferem benefícios para a saúde do hospedeiro (HILL et al., 2014).

No Brasil, probióticos em geral estão incluídos, pela ANVISA, na categoria de alimentos. Dentre os mecanismos de ação dos probióticos podemos citar: competição por nutrição; bioconversão de nutrientes - a conversão de açúcar em ácido lático, por exemplo, torna o ambiente intestinal inóspito para bactérias patogênicas que preferem meios mais alcalinos; produção de substratos, entre eles vitaminas B e K e ácidos graxos de cadeia curta; antagonismo direto pela produção de substâncias bactericidas (bacteriocinas); exclusão competitiva; redução de inflamação e promoção de tolerância imunológica e modulação do sistema imune.

É de suma importância conhecer a espécie e a cepa de cada probiótico que se pretende utilizar, uma vez que probióticos de mesmo gênero, mas de espécies diferentes, estão associados a distintos efeitos no organismo humano. A cepa garante a segurança do probiótico e a obtenção do efeito alegado.

Em cirurgia, as bases fisiopatológicas e clínicas para uso de probióticos encontram-se descritas no quadro abaixo.

Bases Fisiopatológicas

Bases Clínicas

Melhora a disbiose intestinal

 

Redução da incidência de complicações pós-operatórias

Reforça a barreira intestinal com redução da permeabilidade intestinal

Melhora da qualidade de vida

 

Modulação do sistema imunológico

 

Redução da necessidade de antibioticoterapia

Têm efeitos sistêmicos favoráveis

 

Redução do tempo de hospitalização

Potencial redução da deiscência da anastomose

 

Potencial redução de risco de recidiva local do câncer

 

A oferta de probióticos (Bifidobacterium lactis Bl-04, e Lactobacillus acidophilus NCFM) no pré-operatório de pacientes com câncer colorretal modificou a assinatura microbiana tipicamente associada. Ocorreu enriquecimento de bactérias produtoras de butirato no tecido intestinal. Este estudo sugere que a disbiose microbiana do câncer colorretal pode ser manipulada por probióticos (HIBBERD et al., 2017).

Prebióticos alimentares foram definidos pela Associação Científica Internacional de Probióticos e Prebióticos (ISAPP) em ingredientes seletivamente fermentados, que resultam em alterações específicas na composição e/ou atividade da microbiota gastrintestinal, e proporcionam benefícios para a saúde do hospedeiro (GIBSON et al., 2011). Dentre eles se destacam os fruto-oligossacarídeos (FOS) que podem promover crescimento de bifidobactérias e lactobacilos benéficos no cólon.

Simbióticos consistem em produtos que combinam em uma mesma formulação os alimentos prebióticos e probióticos. Um exemplo disponível no Brasil é a mistura de FOS com Lactobacillus acidophilus, Lactobacillus paracasei, Lactobacillus rhamnosus e Bifidobacterium lactis.

Esta formulação de simbiótico foi estudada, entre nós, no pré-operatório de cirurgia do câncer colorretal. De fato, em estudo duplo-cego, aleatório e randomizado, 73 pacientes candidatos à cirurgia para remoção de câncer colorretal foram separados em grupo controle e simbiótico. O último teve consumo de dois sachês do simbiótico, no período pré-operatório, por 7 dias. Houve associação com menores níveis de marcadores inflamatórios, menor taxa de complicações cirúrgicas, menor uso de antibióticos, menor tempo de hospitalização e ausência de mortalidade comparado ao grupo placebo (POLAKOWSKI et al., 2019).

O uso de probióticos e simbióticos em cirurgia eletiva foi avaliado por uma metanálise (KINROSS, 2013) que verificou a existência de menos infecções, menos antibioticoterapia e menos sepsis pós-operatória com seu uso e, consequentemente, menos dias de internação hospitalar.

Em resumo, a composição da microbiota intestinal pode estar alterada no doente cirúrgico do aparelho digestivo por razões inerentes ao paciente, ao procedimento cirúrgico e à própria microbiota. Intervenções com prebióticos, probióticos e simbióticos poderão ser úteis para redução de morbidade pós-operatória.

Com o enorme desenvolvimento dos conhecimentos nesta área, o cirurgião em muito poderá beneficiar seus pacientes ao conhecer as alterações e a modulação da microbiota e sua metagenômica.

Dan L. Waitzberg é professor associado do Departamento de Gastroenterologia da FMUSP

Artigo publicado na edição 710 da Revista da APM - maio/2019

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REFERÊNCIAS
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