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03/12/2014 - O potencial medicinal da Cannabis

Apesar de a maconha ser nociva à saúde, alguns de seus derivados têm poderes terapêuticos
 
O interesse na Cannabis sativa e seus princípios ativos, os canabinóides, como agentes terapêuticos, vem aumentando a cada ano. No entanto, não se trata de um assunto inédito na área da Saúde. No mais antigo texto medicinal conhecido, o Pen Ts’oo Ching, chinês, que possui mais de seis mil anos, havia sugestões de uso da planta para problemas como asma, cólicas menstruais e inflamações da pele.
 
Artigo publicado em maio de 2003 na The Lancet – Neurologia conta que o uso terapêutico da maconha começou a se popularizar a partir do começo do século XIX, em razão das propriedades analgésicas e anticonvulsivas. A Cannabis começou a ter seu uso popularizado para o tratamento de asma e cólicas e, para o alívio desse último, foi prescrita para a Rainha Vitória, do Reino Unido. No entanto, a possibilidade de um tratamento alternativo e do uso dos derivados, e não da própria droga, começou a ser investigada a partir do século XX.
 
"Vale ressaltar que quando fumada, a maconha não tem efeito terapêutico e pode causar irritação nos sistemas respiratório, orofaríngeo e laríngeo. A verdade é que a maconha não é medicinal. Nós temos uma planta com alguns de seus componentes sendo muito estudados na atualidade”, enfatiza Ana Cecília Petta Marques, psiquiatra e presidente do Comitê Multidisciplinar de Estudos sobre Dependência de Álcool e Outras Drogas da Associação Paulista de Medicina (APM).
 
Em 1964, o professor de Química Medicinal da Universidade Hebraica de Jerusalém, Raphael Mechoulam, iniciou seus estudos sobre os possíveis usos medicinais de princípios ativos da maconha. Mechoulam ficou intrigado com o fato de já terem extraído de plantas a morfina e a cocaína, mas de não haver nenhum estudo disponível sobre os extratos da Cannabis sativa. O professor passou a liderar estudos sobre as então desconhecidas propriedades da Cannabis e conseguiu isolar o delta-9-tetraidrocanabinol, agora conhecido como THC, ingrediente psicoativo da droga.
 
É esta substância que "dá o barato” da droga e pode aliviar a dor, aumentar o apetite e melhorar o sono, tornando-se útil no tratamento de pacientes com distúrbios alimentares, insônia e soropositivos, que não sentem fome devido ao coquetel de remédios. Também pode atenuar náuseas de pessoas que passam pela quimioterapia. Por outro lado, entre seus efeitos colaterais estão o aparecimento de episódios psicóticos, de pânico, depressão, alteração dos reflexos e da memória espacial e o desenvolvimento de dependência. Por conta disso, o THC e seus efeitos adversos ainda devem ser mais bem pesquisados.
 
Entre os mais de 50 componentes da planta, o Canabidiol (CBD) é um dos mais estudados e conhecidos. Sem efeito psicoativo, pode reduzir crises epilépticas refratárias e diminuir tremores de pacientes com Parkinson, tendo como efeito colateral conhecido a sonolência. Segundo a literatura médica, esses derivados da Cannabis podem ajudar a reduzir efeitos adversos de tratamentos e, em outros casos, servir de alternativa quando já não há mais respostas na terapia tradicional. Pacientes com Esclerose Múltipla, Doença de Crohn, ansiedade, Glaucoma, dores crônicas e nas articulações e que sofrem de espasmos tiveram melhoras no tratamento com substâncias da planta.
 
"São poucas as evidências de que o THC, o princípio ativo da maconha, tenha efeito terapêutico. Por outro lado, pouco se questiona sobre o canabidiol ter esse resultado em casos isolados e refratários ao tratamento. Já o THC não tem praticamente nenhuma evidência de que seja uma medicação com indicação precisa. Ele age no cérebro e causa dependência. Quando você vai usar uma medicação que tenha THC, o que importa é sua presença, e não se está na forma de droga inalada ou prescrita. Por isso, a chance da pessoa ficar dependente aumenta”, explica Ronaldo Laranjeira, professor titular de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina, da Unifesp.
 
MEDICAÇÃO
A legislação sobre o uso da planta in natura, seu porte, uso de remédios com extratos da Cannabis e o cultivo da planta varia e é bem específica de acordo com cada país. Nos Estados Unidos, Uruguai, Chile, Itália, Bélgica, Finlândia, República Tcheca, Inglaterra, Romênia, Dinamarca, Suíça, Eslovênia, Suécia, França, Bangladesh, Coreia do Norte, Índia e Israel, pacientes, em casos determinados, podem usar medicação à base de extratos da planta.
 
Os remédios mais conhecidos são à base de CBD ou THC, ou de uma combinação dos dois. São eles: Sativex, Marinol e Cesamet. O Sativex (nabiximol) é um spray composto por 50% de CBD e 50% de THC comumente recomendado para o tratamento de esclerose múltipla. O Cesamet (nabilone), cápsulas de THC sintético, é utilizado em alguns países para alívio de náusea e vômito em pacientes de quimioterapia. O Marinol (dronabinol) também utiliza cápsulas sintéticas de THC, para pacientes com Aids, câncer e anorexia.
 
Ana Cecília acrescenta que "os medicamentos à base de canabinóides são indicados para casos de doença resistentes. As amostras de pesquisa ainda são pequenas no Brasil, mas com boa resposta dos pacientes. O potencial terapêutico tem sido observado, mas ainda não é uma recomendação dentro dos protocolos de tratamento. Por exemplo, para abrir o apetite dos indivíduos que estão tomando medicamentos para o tratamento da AIDS, você já tem orexígenos tradicionais. Um derivado canabinóide, o THC, só deve ser indicado se não houver resposta adequada, e o uso precisa ser controlado pelo médico, pois episódios e dependência podem ocorrer”.
 
REGULAMENTAÇÃO
O CBD e o THC são substâncias proibidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Mas discute-se a possibilidade de reclassificação do canabidiol e é possível obter autorização para importação de um produto à base dele. Liberações em caráter excepcional do medicamento já vêm ocorrendo.
 
Foram encaminhados 167 pedidos de importação do CBD para uso pessoal à Agência, dos quais 113 foram autorizados, 10 aguardam o cumprimento de exigência pelos interessados, 39 estão em análise pela área técnica e quatro foram arquivados por interesse da família ou falecimento do paciente. O prazo médio das liberações é de uma semana.
 
No último dia 7 de outubro, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) regulamentou, por meio de Resolução (268), o uso do Canabidiol para epilepsias mioclônicas graves do lactente e da infância, refratárias a tratamentos convencionais já registrados na Anvisa, pois "o uso do CBD é um procedimento terapêutico restrito e excepcional, ainda não registrado pela Agência, porém promissor e de boa tolerabilidade nas situações clínicas acima especificadas e quando adequadamente diagnosticadas”.
 
Para Sonia Maria Dozzi Brucki, coordenadora do Departamento Científico de Neurologia Cognitiva e do Envelhecimento da Academia Brasileira de Neurologia (ABN), "algumas doenças neurológicas obtiveram benefícios com o uso de derivados da Cannabis. É importante diferenciar os canabinóides do uso da própria Cannabis, que está associado a efeitos colaterais. O uso de medicamentos com esses derivados fica a critério do médico e deve ser avaliado caso a caso”.
 
Laranjeira reitera: "no mundo inteiro, nenhuma instituição médica defende o uso medicinal da maconha, o que se discute é o uso do Canabidiol como medicamento, o que já foi aprovado pelo Cremesp e deverá ser aprovado pelo CFM em breve. A indicação de uso ocorre em situações extremas, que não melhoraram com medicação, mas ainda precisa ser mais bem investigada com pesquisa”.
 
Muitas são as ressalvas em torno da questão de recomendação do uso, seus efeitos adversos e a própria regulamentação. O CBD e o THC, mesmo que derivados de uma planta que pode ser usada como uma droga ilícita, são substâncias com possíveis efeitos terapêuticos a serem explorados e pesquisados com cautela, como ocorre no desenvolvimento de qualquer outro medicamento.
 
Matéria publicada na edição 661 da Revista da APM, de novembro de 2014.