DEU NA MÍDIA
23/05/2017 - Psicose, parasita e falta de teste: entenda o que preocupa especialistas em leucemia na bula do remédio importado da China
Presidente do Boldrini e hematologista consultado pelo G1 apontaram problemas no texto da Leuginase. Governo passou a importar produto chinês no começo do ano para combater a Leucemia Linfóide Aguda.
Psicose, tricomoníase (parasita) e a ausência total de estudos. Os três elementos estão presentes na bula da Leuginase, medicamento chinês importado pelo Ministério da Saúde para o tratamento da Leucemia Linfóide Aguda (LLA), e que está no centro de uma polêmica com hospitais especializados no combate a doença. A crítica dos especialistas é que a troca do remédio feita pela União prejudica o tratamento das crianças, faixa etária mais atingida pelo problema, porque ele não tem comprovação de eficácia.
Para entender a diferença entre o novo produto importado pelo Ministério da Saúde e o que era usado anteriormente pelos hospitais, o G1 teve acesso às duas bulas e consultou um especialista em hematologia pediátrica, que apontou divergências entre os documentos. O governo federal explicou, em nota oficial, que o medicamento está dentro do padrão de referência e “já tem sido utilizado por hospitais de todo o país”. [Veja a íntegra da nota abaixo].
Além disso,o Ministério da Saúde encomendou um teste no produto e o resultado foi que o remédio possui qualidade para o tratamento da leucemia. Segundo esse exame, o medicamento chinês mostrou "capacidade esperada de ação contra o câncer" e "parâmetros adequados para uso". A nota técnica também aponta que "não foram encontrados contaminantes bacterianos". As amostras enviadas ao laboratório foram retiradas de hospitais públicos que já tinham recebido o medicamento.
De acordo com o médico e professor da PUC-Campinas Luciano Fuzzato, a principal diferença entre a bula da Leuginase e da asparaginase europeia, que era usada anteriormente no tratamento da doença, é que o documento do medicamento chinês é mais conciso e não cita nenhum estudo realizado em humanos. Já a bula do outro remédio exemplifica os testes realizados e os resultados de eficácia.
O especialista ainda informou que os principais problemas na bula do medicamento chinês, segundo ele, são alguns efeitos adversos que nunca foram verificados em nenhuma asparaginase, como sinais de psicose e a presença de tricomoníase, uma infecção causada por um parasita, que é mais comum em mulheres.
“A asparaginase não dá essas reações. Se fosse no meu filho, eu não ia querer usar esse medicamento. Se nem as bulas eles fazem direito, imagina o remédio. Nós, como especialistas, não podemos usar isso na veia da criança, seria um passo atrás. Esse remédio vai passar em um rim e um fígado em formação, não podemos arriscar de forma nenhuma”, disse Fuzzato.
Além disso, Fuzzato afirmou ainda que o documento tem alguns erros de digitação, como a palavra “presentação” no lugar de “apresentação”, e também de tradução, por conta da troca da expressão “posologia e modo de usar” pela palavra “dosar”. “Pode até ser que não seja um remédio e uma bula errados, por enquanto são apenas desconhecidos e, só por isso, não pode ser usado”, explicou.
Decisão judicial
No dia 12 de maio, a Justiça Federal determinou que o Ministério da Saúde faça a importação da Asparaginase europeia para qualquer hospital do Brasil que realize o tratamento da doença pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e faça a solicitação judicial. A ação foi protocolada pelo Centro Boldrini, em Campinas (SP), que se recusa a usar o novo produto comprado pela União.
Na sentença, proferida pela 6ª Vara Federal de Campinas, o juiz Haroldo Nader estabelece que o Ministério da Saúde forneça o medicamento alemão nas quantidades necessárias, mediante solicitação dos hospitais. A ação também pedia a suspensão da importação da Leuginase, mas o magistrado não mencionou nada sobre esse pedido no documento. A multa diária em caso de descumprimento é de R$ 50 mil.
De acordo com especialistas, cerca de quatro mil crianças precisam de um componente chamado asparagina, que tira o alimento das células malignas da LLA. Até o início deste ano, o Ministério da Saúde importava a Asparaginase de laboratórios alemães e americanos, cuja eficiência é de 90% e possui apenas três impurezas, segundo testes. No entanto, o impasse começou quando, no início deste ano, a pasta decidiu comprar o remédio do fabricante chinês.
A oncologista e presidente do Boldrini, Sílvia Brandalise, se manifestou favorável à decisão judicial e afirmou que continua se recusando a aplicar o medicamento chinês nos pacientes do Boldrini. Como ficou sem o estoque do remédio, a médica realizou, por conta própria, a importação de um lote emergencial da Asparaginase europeia, que chegou na sexta-feira (19). Outros 500 frascos são esperados até a próxima semana.
Ao G1, a médica também criticou o texto da bula da Leuginase importada pelo Ministério da Saúde.
"Prescrever um medicamento sem comprovação de eficácia é um ato de imperícia profissional. Além disso, essa bula é uma afronta. Não existe a possibilidade da asparaginase dar efeitos adversos como alguns que são mencionados nesta bula", disse a presidente do Boldrini.
Resultado de testes
O teste encomendado pelo Boldrini para verificar a eficácia da Leuginase apresentou resultados preocupantes para os pacientes. O laudo apontou que 40% do produto está contaminado por proteínas, o que, segundo especialistas, não garante a eficiência do remédio. O exame foi realizado por um laboratório americano e foi o segundo teste no medicamento encomendado pelo hospital.
De acordo com Silvia, a quantidade de proteína presente na Asparaginase, que era o remédio importado pelo Ministério da Saúde antes da troca para o produto chinês, é de 0,5%, o que comprova a tese do hospital de que a Leuginase não possui eficácia suficiente para ser aplicada em crianças. O primeiro teste encomendado pelo centro, feito pelo Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), já havia apontado que o produto apresenta 398 impurezas.
O que diz o Ministério da Saúde
Sobre as divergências nas bulas dos dois remédios, o Ministério da Saúde afirmou, em nota enviada ao G1, que a ação da Leuginase e os efeitos adversos estão sendo observados e estão dentro do previsto pela literatura científica e técnica. De acordo com a pasta, o Instituto Nacional de Controle e Qualidade em Saúde, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), realizou uma análise no produto e "constatou a capacidade de ação contra o câncer". Confira a íntegra da nota enviada pelo governo federal:
"O Ministério da Saúde esclarece que, embora menos comuns em crianças, a bula da Leuginase cita efeitos colaterais similares aos de outras marcas de L-Asparaginase. O produto adquirido e distribuído pela pasta está dentro do padrão de referência e já tem sido utilizado por hospitais de todo o país, tendo sido observado que a ação e os efeitos adversos estão dentro do previsto pela literatura científica e técnica. Uma análise já foi realizada pelo instituto de referência nacional para qualidade de produtos da saúde, o INCQS (Instituto Nacional de Controle e Qualidade em Saúde, da Fiocruz), e constatou a capacidade de ação contra o câncer.
Outros cinco países que utilizam o medicamento também foram consulados e apontaram que não há elementos que contraindiquem a distribuição do produto.
Cabe destacar que é normal a observação de efeitos adversos mais raros (“efeitos colaterais”) entre diferentes apresentações de um mesmo medicamento. É importante esclarecer que a quimioterapia é acompanhada de complicações que reduzem a resistência do organismo, favorecendo infecções (bacterianas, fúngicas e virais) e parasitoses, não devendo ser tomado com estranheza o fato de “tricomoníase” ser um efeito adverso notificado.
Além disso, é de conhecimento também que a L-asparaginase pode provocar, com maior frequência em adultos, efeitos neurológicos (coma, anormalidade no eletroencefalograma - EEG, hemorragia intracraniana, síndrome de encefalopatia posterior reversível, convulsões, sonolência, meningite asséptica, confusão, estupor ou coma) e psiquiátricos (agitação, depressão, alucinações).
Cabe ressaltar, ainda, que assim que foram detectados problemas de tradução na bula da Leuginase o Ministério da Saúde solicitou adequação. Vale deixar claro que a prescrição do medicamento é feita com base nos respectivos protocolos adotados nos hospitais e, até o momento, não houve nenhum efeito diferente do esperado pela literatura disponível."
Respostas
Nesta segunda-feira (22), o Centro Boldrini afirmou ao G1 que enviou um ofício ao diretor do Ministério da Saúde pedindo esclarecimentos sobre a nota técnica divulgada pela instituição, na semana passada, que descartava risco no uso do medicamento chinês Leuginase contra leucemia.
No documento, o centro cobra estudos que comprovem a eficácia do produto e afirma que a nota técnica divulgada pelo Ministério da Saúde não atende aos requisitos básicos das pesquisas científicas realizadas neste caso.
O Centro Boldrini afirma ainda que sem essas respostas considera "imperícia médica a administração do medicamento Leuginase a pacientes, pois são necessários estudos técnicos científicos em revistas indexadas."
O que diz o fabricante
O G1 não conseguiu contato com a empresa uruguaia Xetley S.A, representante do laboratório Beijing SL Pharmaceutical - fabricante da Leuginase. No entanto, no dia 27 de março, a companhia divulgou uma nota de esclarecimento, após uma reportagem do Fantástico, da TV Globo, onde disse que as reações adversas do medicamento são iguais às do remédio comercializado pela anterior fornecedora.
"As mesmas reações indicadas na bula do medicamento (...), inclusive depressão, confusão mental, agitação e alucinação (...) são raramente previstas nos doentes, e descritas perante as entidades reguladoras internacionais, como a EMA (reguladora de saúde europeia) ou a FDA (associação regulatória americana)", diz o texto da nota.
Anvisa e laboratório
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizou a importação do medicamento pelo Ministério da Saúde, mas informou que a responsabilidade da qualidade do produto é do importador. Já o LNBio também emitiu um comunicado onde explica que os testes realizados no remédio são "preliminares e não conclusivos".
Por G1