O QUE DIZ A MÍDIA
05/07/2021 - Vacinação em SP não prioriza bairros com mais mortes
As desigualdades observadas desde o início da pandemia de Covid-19 na distribuição de internações e óbitos pelo país, com maior concentração de casos nas regiões mais pobres, ocorrem também na campanha de vacinação contra a doença.
Uma análise do LabCidade, laboratório da USP que acompanha políticas públicas em São Paulo, mostra que a priorização dos mais velhos na vacinação na capital paulista resultou em uma taxa muito maior de imunizados nas regiões onde se concentra uma população branca, com mais renda e que não foi a mais afetada pela Covid-19.
A Prefeitura de São Paulo diz que segue as recomendações dos planos nacional e estadual de imunizações, que são ancoradas em critérios como faixa etária, comorbidades e profissões de mais risco, mas não consideram os territórios mais atingidos por internações e mortes.
Outros estudos, como um epidemiológico da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), já mostraram que os índices de mortalidade por Covid são mais altos nas áreas de maior vulnerabilidade social e que, por isso, elas deveriam ganhar prioridade na escala de vacinação. Mas isso não avançou no país.
A análise do LabCidade, a partir de dados do Ministério da Saúde, mostra que até o dia 17 de maio 16% ou mais de moradores de bairros paulistanos mais ricos como Moema (zona sul), Pinheiros (zona oeste) e Consolação (área central) tinham sido vacinados pelo critério etário com uma dose da vacina. Nesses bairros, a mortalidade por Covid ficou entre 10 e 20 casos por 10 mil habitantes.
Já nos bairros mais pobres e com uma concentração maior de negros, como Cidade Tiradentes (zona leste), Parelheiros (zona sul) e Jaraguá (zona noroeste), de 4% a 8% da população tinha sido vacinada pelo critério etário, taxas de duas a quatro vezes inferiores às das áreas mais ricas. Nessas regiões, foram 50 mortes ou mais por 10 mil habitantes.
“Desde o início da pandemia, a gente vem avisando: ‘gestor público é preciso olhar o território, os lugares mais afetados, para construir estratégias de combate da epidemia.’ Tem que combater o foco do contágio. Infelizmente, os nossos alertas não foram ouvidos”, diz Aluízio Marinho, pesquisador do LabCidade.
Em comum, os locais mais afetados pela Covid têm moradias mais precárias, o que aumenta o risco de contágio. Também concentram trabalhadores que não puderam ficar em casa isolados, como empregadas domésticas, entregadores e garis, e que dependem do transporte público, muita vezes lotado, para se movimentar pela cidade.
Um estudo da Unifesp, em parceria com a Fundação Tide Setubal, apontou que, nos bairros com maior número de usuários de transporte coletivo, 80% dos óbitos por coronavírus podem estar relacionados à necessidade de deslocamento. Entre as dez regiões da capital com mais mortes pela doença, nove são líderes no número de viagens em ônibus, trem e metrô.
“O espaço em que caberia uma pessoa vai cinco. Em Itaquera, tem de entrar empurrando, não tem como se mover. Eu me sinto impotente, não acho justo. Não fui infectado ainda pelo coronavírus por sorte”, diz o assistente financeiro Igor Esteves, 28, que pega ônibus, trem e metrô para ir de São Miguel Paulista, na zona leste, até o trabalho, na av. Faria Lima, zona oeste.
De acordo com Aluizio Marinho, do LabCidade, ainda é possível intervir na desigualdade vacinal incluindo categorias profissionais que desempenham atividades essenciais e que continuam fora das prioridades da campanha, como os garis e as domésticas.
“A primeira morte por Covid em São Paulo foi de uma empregada doméstica da Cidade Tiradentes. Há muitas categorias que também não puderem parar. Ainda dá tempo de proteger essas pessoas.” A diarista Rosana Aparecida Urbano, 57, morreu em 12 de março de 2020. Um dia antes, tinha percorrido 25 km para ver a mãe, internada com Covid em um hospital da zona leste. Diabética e hipertensa, passou mal ao saber que a mãe fora intubada e foi internada no mesmo local. Morreu no dia seguinte também de Covid. Deixou três filhos e o marido.
Desde abril, o Ministério da Saúde incluiu os garis nos grupos prioritários da vacinação e alguns locais, como o Distrito Federal e o Rio de Janeiro, já estão imunizando esses profissionais. Mas em São Paulo eles continuam de fora. Em junho, a categoria fez greve para reivindicar a vacinação, mas ainda não foi atendida.
Segundo o Siemarco, sindicato da categoria, cerca de 2.000 funcionários já foram infectados pela Covid-19 desde o início da pandemia e pelo menos 50 morreram em decorrência da doença. A maioria dos trabalhadores é negra.
Um estudo liderado pela médica Fátima Marinho, pesquisadora sênior da Vital Strategies, apontou que a Covid tem sido muito mais mortífera entre os negros, especialmente os mais jovens no estado de São Paulo. Para ela, essa é mais uma razão para que os jovens das periferias sejam priorizados na vacinação porque estão mais expostos ao risco de infecção pela Covid-19.
Na análise do LabCidade, os pesquisadores também relacionam os territórios com maior incidência de Covid-19 às regiões com a maior parte da população negra.
“Os critérios da campanha de vacinação adotados até o momento tornam-se mais um exemplo de como opera o racismo estrutural em nossas cidades”, escrevem os autores.
Para o médico e advogado sanitarista Daniel Dourado, pesquisador da USP, a Covid revela as desigualdades. “Se a gente olhar o estado de São Paulo, vai ver que a capital tem índices melhores do que a região de Registro [uma das mais pobres do estado].” Na sua opinião, muitas dessas questões poderiam já ter sido resolvidas se o país contasse com vacinas em doses suficientes e com uma coordenação nacional bem articulada com os municípios.
Fonte: Folha de S.Paulo